sábado, setembro 09, 2023

THE X-FILES: o anti-poder

The X-Files é uma proposta absolutamente atentatória e uma bomba a ser largada sobre a ideia pública das acções governamentais. O seu criador, Chris Carter, sempre habituou os telespectadores norte-americanos a questionarem-se não só como cidadãos, mas também como seres humanos. Noutra série sua, Millennium, disseca o fenómeno da morte, dos homicídios e do impulso de matar, principalmente na América contemporânea, através das investigações de Frank Black. As fundações da sociedade norte-americana, bem como os seus valores base, são constantemente questionados, desde os excessos do fanatismo religioso, passando por delírios milenaristas e messiânicos, e acabando com referências directas a feriados tão americanos como o “Thanksgiving”, e a sua importância e real significado. Num episódios, “Roosters”, um dos personagens secundários, Peter Watts, explica longamente a Frank Black o significado simbólico da nota de um dólar, com a sua pirâmide encimada com um olho e a expressão “Annuit coeptis” Uma alusão explícita a um património maçónico presente na fundação da Nação. É, no entanto, com The X-Files que Carter vai mais longe. Fox Mulder e Dana Scully são as duas personagens principais e duas pontas de uma mesmo lança decidida a penetrar numa densa intriga governamental, onde ninguém da elite política norte-americana fica bem visto. Contrariamente a 24, onde David Palmer é a nossa esperança no poder político norte-americano e suas justificações, não existe luz por aqui. As orquestrações que os dois agentes tentam desvendar são normalmente simbolizadas por uma espécie de sindicato, um governo dentro do Governo (ou, numa perspectiva de religião civil, um sacerdócio dentro de outro sacerdócio), composto por figuras sinistras, que dão a entender ligações a órgãos superiores, como o Senado, o Congresso ou mesmo a Presidência. Uma conspiração ao mais alto nível. Mulder e Scully não podem ser mais diferentes: ele é abnegado, obcecado, sem vida privada e com uma crença incrível não só em conspirações e no paranormal (ou sejam em algo que há para além do real), mas também na justiça doa a quem doer. Scully quer construir uma vida pessoal, é céptica empedernida e crê que o Governo realmente existe para proteger os cidadãos. Mesmo quando as provas científicas, a sua religião pessoal, lhe indicam que há algo de errado no interior da política, ela recusa-se a acreditar. Mulder e Scully, apesar de tudo, tem aquilo que podemos designar como pedigree norte-americano. O primeiro é filho de um antigo membro de uma comissão do governo designada por Majestic 12, encarregada de lidar os segredos mais obscuros do país, como toda a verdade por detrás do fenómeno OVNI e mesmo projectos científicos administrados por cientistas nazis exilados; Scully tem como pai um militar, falecido durante a 1ª temporada, que lhe inculcou valores rígidos, conservadores e nacionalistas. No entanto, a diferença entre ambos, na forma de encarnar o poder, é notória. Se quisermos escolher uma figura que represente o poder em The X-Files, a escolha terá de cair num homem sem nome na série, mas que é conhecido informalmente por Cigarrette Smoking Man (CSM). CSM é o típico cabecilha de conspirações, tal como nos é descrito pelos teóricos do género: veste de cores escuras e tem o controlo sobre aparentemente tudo. Este é o homem que afirma, no episódio “Talitha Cumi”, no final da terceira temporada, Don’t threaten me, Mulder. I’ve watched presidentes die. Todo o percurso biográfico de CSM, como mostrado em “The musings of a CSM”, na quarta temporada, envolve-o nos principais momentos que chocaram a nação norte-americana na segunda metade do século XX: ele assassinou John Kennedy, Martin Luther King, envolveu-se em Watergate e numa determinada cena, ele aparenta controlar mesmo os divertimentos do país, nomeadamente os vencedores dos Óscares e quem irá ganhar o campeonato de basebol. Um poder assim, todo dominador, acima de tudo e de todos, é contra os princípios enunciados na religião civil, de entendimento entre os governantes e os governados. CSM mostra-se totalmente contra a liberdade pessoal, quando diz, novamente em “Talitha Cumi”, Anyone who can appease a man’s conscience can take his freedom away from him. No entanto, no mesmo episódio, ele explica porque é, actualmente, os homens nunca poderão tomar conta do poder: Men can never be free, because they're weak, corrupt, worthless... and restless. The people believe in authority. They've grown tired of waiting for miracle or mystery. Science is their religion - no greater explanation exists for them! Indubitavelmente, um pragmático, não um crente. Pode-se argumentar que The X-Files defende que, em última instância, é preciso acreditar e lago que nos é superior, não necessariamente, como no caso de Mulder, numa divindade, para conseguir ser um bom norte-americano. Nesse sentido, puramente espiritual, The X-Files faz a defesa e legitima a religião civil, ou algo semelhante, como factor primordial no bem-estar norte-americana. CSM, como personagem, funciona como contraponto do que acontece quando não se acredita: tornamo-nos iníquos e jogamos com a nossa glória pessoa, nunca com o serviço prestado aos cidadãos. Onde este aspecto de CSM se torna mais evidente é, claro, na conspiração central que faz mexer a série. Esta envolve uma operação que rapta cidadãos norte-americanos de suas casas, através de um acordo entre extraterrestres e esse Sindicato atrás referido, de que CSM faz parte. À partida, isto é quase dormir com o Diabo, por parte do Sindicato; e por outro lado, desrespeita, em muitos, os direitos dos cidadãos norte-americanos. O abuso da confiança que os norte-americanos têm no seu governo é levada ao extremo, quando vimos a saber que os cidadãos têm sido marcados, como gado, através do programa de vacinação contra a varíola promovido pelo departamento de Saúde dos EUA. Para mais, este programa teve envolvimento, na mitologia da série, de antigos cientistas nazis fugidos da Alemanha e que colaboraram com os norte-americanos. Ora, é a mistura de dois epónimos contraditórios e a definitiva afirmação de que este Sindicato dorme com um Diabo. Se bem que, oficialmente, o Nazismo tenha sido minimizado nos EUA, em comparação com o Comunismo, a série de Chris Carter vem trazer novamente à pedra o nazismo como grande mal. Inevitavelmente ligadas a estas conspirações estão as instituições militares, como o braço executante do Governo. Na verdade, algumas das características da religião civil norte-americana relacionadas com as suas forças militares estão presentes na série, e são desvirtuadas nalguns episódios. O exemplo mais cabal de análise do papel do exército na questão da memória contemporânea (e, mais directamente, ligado ao Memorial Day) é o episódio “Unrequitted”, da quarta temporada. Aqui, um soldado que se julgava morto, após ter desaparecido no Vietname, regressa, pois afinal fora deixado à sua sorte num campo de prisioneiros. Esta realidade, tantas vezes negada oficialmente, é o ponto de partida para a relação entre as entidades políticas e os seus heróis esquecidos, num retrato das relações entre os dois lados nada lisonjeiro para os primeiros. As instituições militares sabiam que este soldado, e outros mais, haviam sido abandonados, mas preferiram negar a sua morte a admitir isso. Assim, o objectivo deste soldado que volta é o de encontrar os responsáveis e matá-los. Numa leitura mais a fundo, o Exército criou o seu próprio inimigo. O mais simbólico é o facto de falarmos da guerra do Vietname, o único conflito armado em que os EUA foram derrotados (noutra perspectiva, falharam o seu “manifest destiny”). Uma cena mostra como as feridas dessa guerra nunca sararam: várias cenas são filmadas no Memorial aos combatentes mortos no Vietname e numa delas, o soldado regressado encontra uma viúva de um seu companheiro de esquadrão a chorar o marido enquanto olha o sue nome a dourado na pedra negra. Quando lhe entrega as chapas de identificação do marido, a reacção desta é chorar, duvidar e revoltar-se. O retrato de um soldado desiludido é elevado a uma raiva cega em “The walk”, passado num hospital de veteranos, onde um quádruplo amputado, zangado com a forma como o governo trata os seus veteranos, e também agastado com as decisões erradas de alguns dos seus superiores hierárquicos, arranja forma de se vingar deles, matando-lhes as famílias e destruindo-lhes a vida. Em The X-Files, há um respeito pelo militares, mas também uma repulsa pelos seus maus actos: um cancro que afecta Scully a partir da 4ª temporada é provocado por testes nela feitos pelo Exército. No entanto, a ideia que fica é sempre a da má utilização por parte da máquina política e do mau tratamento por eles dado às suas militares. Tendo em conta que a religião civil norte-americana dedica um respeito e admiração quase sagrados aos militares, não deixa de ser suficientemente contundente. Se, no entanto, como atrás foi demonstrado, The X-Files é uma série que desacredita todo o modelo político e espírito de missão (pelo menos, uma missão positiva) americanos, na sua temática extra-conspiracional acaba por dar força à memória da verdadeira América, aquela que normalmente a Televisão deixa de fora: a América profunda. De facto, mencionámos anteriormente que esta série se debruçava sobre as investigações de fenómenos paranormais efectuadas pelos agentes Mulder e Scully. Se alguns desses fenómenos paranormais acabam por derivar de mutações genéticas e experiências científicas desconhecidas, outros entram num outro tipo de património mítico que não sendo directamente da religião civil, ajuda a consolidar o espírito nacional ao nível antropológico, psicológico e místico, entrando num folclore que chega a ir bem mais trás que 1776. Se por um lado estes fenómenos paranormais dão forma a crenças arreigadas na psique norte-americana, por outro lado vêm lembrar que a América já era habitada antes de haver cidadãos norte-americanos. O episódio “Jersey devil”, da primeira temporada debruça-se, por exemplo, num mito recente, originário do século XIX, acerca de um monstro que vive área do estado de Nova Jersey. No entanto, foge à realidade do próprio mito existente, onde a criatura é representada como um híbrido entre um pássaro e um cavalo: em The X-Files, arranjou-se maneira de incorporar aqui um outro mito americano mais famoso, o do Bigfoot; e assim, este Diabo de Jersey surge-nos como um hominídeo aparentado com o Homem, na tradição do Bigfoot. O episódio, no entanto, relembra-nos outro dos mitos americanos: o da fronteira. Scully, a certa altura, pergunta a Mulder como é que uma tal criatura pode passar despercebida às pessoas das cidades de Jersey. Referindo os densos bosques perto das urbes, Mulder relembra como a América ainda não atingiu por completo a sua dimensão especial, ao dizer que há muitos segredos que as grandes florestas norte-americanas não revelaram; e dá como exemplo, no estado de Washington, a imensa floresta entre a Califórnia e Seattle. Assim, não é o espaço a última fronteira: é o próprio património mítico e territorial não explorado dos próprios Estados Unidos. Isto verifica-se igualmente em “Quagmire”, um episódio de traços classicamente paranormais abordando uma lenda índia acerca de um monstro pré-histórico que vive num lago norte-americano. Este tipo de fenómenos é reportado por todo o país, estando tão enraízado no imaginário norte-americano como o de Loch Ness se encontra no imaginário europeu. Em “Quagmire”, a possibilidade do desconhecido dentro de nós volta-se a apresentar com uma criatura desconhecida a viver debaixo dos próprios narizes da população e da comunidade científica em geral. Isto volta a levantar questões acerca de onde estabelecer afinal a fronteira do desconhecido na projecção norte-americana. Na série, os EUA são uma terra com muitos segredos ainda por desvendar. Noutros casos, os fenómenos prendem-se mesmo com um património histórico que não é propriamente norte-americano, mas que com o tempo entrou no espírito dos norte-americanos. “Sanguinarium”, na quarta temporada, debruça-se sobre um aparente caso de bruxaria numa clínica de estética e operações plásticas. A subtileza de misturar a superstição e a ciência num mesmo caso sempre foi o apanágio desta série, mas aqui ganha outros contornos. De facto, o autor dos actos de bruxaria é um dos médicos, o que nos relembra que, na América, o passado e o presente não estão tão distantes assim e que uma nação tecnicamente evoluída pode, na verdade, ainda acreditar em coisas que fogem ao seu domínio. Para além disso, “Sanguinarium” relembra toda a mística pagã da bruxaria, e num determinado momento, isso é ligado directamente aos fundadores da nação norte-americana. Nada que a série já não tivesse feito: em “Syzygy”, na terceira temporada, uma aldeia parece estar sobre ameaça de cultos demoníacos. E rapidamente se cria um ambiente de histeria em massa, de ignorância para com provas científicas e de medo generalizado, o que conduz a casos de justiça popular. Primeiramente, este acto de tomar a justiça nas próprias mãos, apesar de considerarmos o contrato entre os cidadãos e o Estado de tradição Rousseauniana, é algo que a Constituição inclui. A lei que permite ao cidadão possuir arma vai neste sentido, e alude a que se o Estado protege o cidadão, tudo bem; agora, o cidadão não é obrigado a confiar cegamente. O que está aqui em jogo é a afirmação do indivíduo como elemento fundamental na América e do seu direito a garantir a sua própria sobrevivência; em segundo, esta ambiência relembra-nos, historicamente, o famoso julgamento das bruxas de Salém, o que introduziu no vocabulário popular a expressão caça às bruxas, tantas vezes usada no século passado durante o período em que o senador Joe McCarthy manteve a Comissão para as Actividades Não-Americanas. O espectro do evento que precipitou o acesso de nacionalismo relacionado com a memória é também abordado numa perspectiva diferente, com interpretações distintas: “Home” da quarta temporada, ressuscita a memória daquela que é considerada a guerra fratricida da América. Em Home, a palavra fratricida não existe, no sentido de sangue, mas está lá no sentido da relação com o outro: o episódio descreve uma família de quatro irmãos e uma mãe que vivem numa casa que foi construída durante a Guerra Civil e desde então nunca mais foi alterada. Ou seja, temos uma metáfora de uma América que não conseguiu ultrapassar traumas, exponenciado pela estranheza que torna esta família assunto de um X-file: desde o século XIX que os membros da família têm sexo apenas entre si, não confiando em mais ninguém para entrar no círculo familiar. Aqui, há uma crítica muitíssimo subtil ao pressuposto tão norte-americano que é o de “nós e os outros”. Os descendentes de relações sexuais entre membros da mesma família nascem deformados; ou seja, se não nos conseguirmos dar com os “outros” e com eles alcançarmos um consenso, podemos ficar “deformados”. O episódio mostra ainda um brutal homicídio perpetrado pelos três irmãos, a um chefe de polícia de uma aldeia vizinha. O chefe de polícia (ou sheriff, nome que relembra as aventuras do Velho Oeste e dessa frontier, que aparentemente ainda o é nalguns pontos) é o símbolo do poder federal nos pequenos lugares, o que torna o acto dos deformados ainda mais atentatório aos princípios da religião civil de respeito pelo Estado e pelo outro. Como disse atrás, se há uma crítica aguda ao poder político governamental, há uma simpatia e um certo louvor pelo poder instalado na América profunda. Esta especificidade da comunidade como elemento fundamental da coesão norte-americano surge abordado de maneira extrema em dois episódios. Na segunda temporada, “Our town” relata-nos um caso investigado por Mulder e Scully, onde um homem desaparece misteriosamente numa floresta no norte do país. Na fábrica onde trabalhava, todos parecem esconder alguma coisa e quando uma das trabalhadoras morre de Kreutzfeld-Jacob, uma condição médica raríssima, e outros habitantes da pequena cidade têm idêntica morte, algo de estranho parece mesmo passar-se. Vem-se a descobrir que toda a cidade pratica um canibalismo ritual, parecendo ter uma apetência estranha por gente de fora da cidade. O primeiro homem a desaparecer sofria, precisamente, da doença que ia matando os outros. No final, os habitantes acabam por se ver obrigados a comer um dos elementos da própria comunidade para garantir o seu silencio, o que conduz Mulder e Scully à descoberta deste esquema, seu desmontamento, e da fábrica, que era o sustento económico desta comunidade. O líder espiritual desta espécie de culto pagão fora um homem que combatera na Segunda Guerra Mundial, no Bornéu. De facto, há poucos personagens masculinos em The X-Files que não tenham tido uma presença no exército no seu passado. Nesta comunidade, a lição parece evidente: quebrar esse espírito de união que existe entre as pessoas de uma mesma comunidade é acabar com ela. A partir do momento em que nos atacamos uns aos outros, em vez de dirigirmos a nossa atenção a um inimigo exterior, é o fim. Decerto forma, aquela comunidade reflecte um certo espírito norte-americano, cujo apelo político é constante quando se trata de calar vozes discordantes. Mesmo que se dê em circunstâncias retorcidas, como é o caso de “Our town”. Já em Humbug, da terceira temporada, a estrela é uma comunidade de antigas atracções circenses, com particularidades físicas muito alternativas: há um homem que já foi parecido com um gorila, outro que come tudo e mais alguma coisa, outro ainda que tem um buraco no lado onde mora um irmão mais novo, outro imune à dor… Esta é uma comunidade muito específica: é a comunidade daqueles que não podem viver em cidades normais porque não seriam bem encarados pela vizinhança; mas aqui, todos juntos, criam a sua própria harmonia. Mesmo que essa harmonia seja quebrada por um conjunto do homicídios… A comunidade de freaks mostrada por Humbug mostra um certo carácter ideal da América como lugar para todos. Esta cidade é efectivamente oficial e sancionada pelo estado da Florida, onde ela existe. Portanto, numa certa perspectiva, esta é a América como terra prometida, mas com ressalvas: estes freaks apenas são aceites porque vivem fora das comunidades normais No entanto, é-lhes permitido viver como comunidade, porque isso é essencial ao espírito do país: porque isso responde ao grande ideal norte-americano. Em “The X-Files”, o que é americano vê-se amiúdes vezes obrigado a confrontar o que é dos outros. Quando as mitologias e místicas específicas dos imigrantes são abordadas, entramos num outro tipo de análise completamente diferente. Embora se tenha falado que o Deus norte-americano era uma entidade abstracta que não mexia com outras religiões e crenças, a sua tradução legal obriga-o, na série, e através do FBI, uma agência federal, a entrar em choque com crenças diferentes da norte-americana. No episódio “The Calusari”, da segunda temporada, uma família romena é vítima da assombração de um dos seus elementos e não demora muito para que, entre as investigações de Mulder e Scully, surja uma equipa de exorcistas romenos para tratar da questão. Os agentes vêem-se obrigados a prendê-los e questioná-los, embora sem sucesso. Quando no final a intervenção destes exorcistas se mostra fundamental para a resolução do caso, perguntamo-nos qual será o “Deus” mais poderoso e mais resoluto: o norte-americano ou o romeno. De facto, Mulder ajuda ao exorcismo final, o que dá um ar ainda mais ambíguo à questão. Para mais, o inimigo aqui em questão é o Diabo, ou seja, o Mal (Evil), elemento fundamental também na religião civil norte-americana como contraponto ao Deus bom. Noutro episódio, “Hell money”, somos confrontados com o drama de uma família chinesa envolvida no tráfico de órgãos, com fantasmas chineses pelo meio. Todo o caso se desenrola em Chinatown, a comunidade de emigrantes chineses em Nova Iorque. Existe aqui, novamente, aquela especificidade comunitária que abordámos anteriormente. Quando Mulder e Scully intervêm, perturbam o equilíbrio existente numa comunidade que transforma o tráfico de órgãos num jogo de sorte e de azar, mas aceite por todos. As penas por fugir às suas consequências são de índole sobrenatural, e por isso o temor apossa-se de todos, mesmo daqueles para quem a extracção de órgãos significa a morte. No entanto, aqui, a presença de Mulder e Scully revela-se benéfica: a sua pressão leva à descoberta de que o jogo de sorte afinal estava viciado pelos seus organizadores, levando à revolta dos envolvidos, de forma violenta e anárquica. Ao contrário do caso romeno, a mística norte-americana leva aqui a melhor, não atrapalhando a resolução dos problemas das comunidades, mas antes ajudando a resolvê-los. Em “Hell money”, a América leva a melhor. Por fim, e porque o espaço não é muito, The X-Files aborda também algo directamente ligado à religião civil norte-americana e, por conseguinte, a ser-se americano: a espiritualidade messiânica. A história do episódio “Revelations”, da terceira temporada, contém em si os traços deste paradigma: um rapaz, verdadeiramente estigmatizado, é perseguido por um homem que se acredita ser um enviado do Demónio à Terra para matar doze portadores de estigmas, para assim permitir a vinda do seu Mestre. Mulder e Scully tentam proteger o rapaz, e Scully leva esta missão muito a peito: segundo o rapaz, ela está destinada a ser a sua protectora. Sendo Scully não só do FBI, mas, como vimos atrás, filha de um militar de alta patente, várias extrapolações podem ser daqui retiradas. Não é Mulder o focado nesta missão. Mulder, aliás, nem é crente, tem um vertente agnóstica bastante acentuada. Scully, apesar do seu cepticismo relativamente ao paranormal, é católica e tem fé. Logo, alguém com fé e que acredita é a única pessoa capaz de realmente lidar com o divino. Para mais, tendo antecedentes ligados a instituições quasi-religiosas, numa perspectiva norte-americana, é a mulher indicada para a tarefa em causa. O título do episódio é sugestivo: “Revelations”. Revelations é a palavra inglesa que designa o Livro do Apocalipse, que é, indubitavelmente, a parte mais profética da Bíblia; e é de messianismo, com toda a trama de um ser humano que simboliza a salvação, que aqui se fala. Um messianismo que só pode ser concretizado com a intervenção do FBI. Mais uma vez, embora tente desmontar a religião civil num ponto de vista puramente político e governamental, é nas pequenas coisas, míticas, que a série revela respirar o mesmo espírito que alimenta a alma norte-americana. A negação formal e prática dessa religião é emendada com um interesse genuíno numa América do Passado, uma América escondida e transcendente

quinta-feira, setembro 02, 2021

Georgia on my blog: Um banho de História



Não recolhe longe das minhas ideias que atravessei a Europa apenas para passear naquela que foi um dia a capital da Iberia. Tbilisi desabrocha como cidade algures no século V, quando o rei Vakhtang I precisava de uma capital para o seu reino com nome latino. A região de Tbilisi fora habitada desde a Idade do Ferro, devido à sua localização geográfica e segundo a lenda da fundação da cidade, foi esse o principal chamariz para o malogrado rei fundador. Estava o senhor numa caçada a faisões numa floresta quando se aleijou. Algures por entre o arvoredo, encontrou uma fontezinha de água sulfurosa que lhe curou as chagas com assinalável rapidez e o o monarca, fascinado, decidiu logo ali desbastar as árvores para erguer um povoado. Porque nada diz “obrigado” como a destruição completa de uma zona natural que contribuiu para o nosso bem estar. O sucessor de Vakhtang, Dachi I, completou a mudança da capital do reino para esta cidade onde passeio e o seu crescimento nos séculos seguintes deveu-se à proximidade com a Rota da Seda e à benesse de ficar praticamente a meio caminho entre três mundos: o Romano, através de Bizâncio; o Eslavo, através do Cáucaso; e o Persa, numa ligação com as terras longínquas do Oriente Chinês. Portanto, estar em Tbilisi acaba por ter uma certa sonoridade consoante com os meus anteriores roteiros de viagem. Nunca aqui estive, mas as pistas de outros passeios estão no ar. Quando atravesso a ponte Metekhi, sobre o rio Mtkvari – um escorrega de água castanha, sinal de que o degelo está no seu final, que risca em serpentina esta urbe georgiana – estou a sair de um presente que a Geórgia ocidentalizada constrói para si e embrulho-me no passado histórico deste povo. A cidade está dividida e a ponte, no fundo, é um de deLorean com grades. Permite-me viajar no tempo.

                                      

O turismo domina-a e a caça ao turista também. Ainda nem cheguei à outra margem e já fui abordado por umas cinco pessoas a oferecer-me passeios turísticos pelo país. Recuso educadamente e mesmo por entre o calor abafado que já criou um mar Cáspio nas minhas costas, tento fazer sentido do desenho da cidade. Do meu lado direito, noto brotado os exemplares de arquitectura contemporânea do Rike; mas do lado esquerdo, entre igrejas e a afastada muralha da fortaleza de Narikala, a verdadeira Tbilisi, pelo menos a mais próxima da original, assume-se. Partilhando o nome com a ponte, a igreja da Virgem Sagrada de Metekhi assume a sua contra-luz, vigiada por uma estátua do rei fundador. A igreja foi aqui construída, num pequeno monte onde supostamente um mártir ortodoxo chamado Habo foi executado no século VIII. No entanto, pouco resta da igreja original. Várias destruições decorrentes de catástrofes naturais e eventos militares levam a que apenas vejamos uma sombra do passado. Como acontecerá, aliás, ao longo dos dias em que aqui passamos. Percorrer a cronologia de Tbilisi é a pretensão de registar um mapa de convulsões. Entre ocupações à força, terramotos e mudanças de dono imperial, há muitas oportunidades de perder a identidade; mas algures, entre reconstruções e genuína vontade de glorificar o passado através do esplendor da arquitectura (o melhor exemplo é a renovação que a cidade atravessou no final do século XIX e início do século XX) marca mais o carácter rugoso de um magote de pessoas com uma identidade comum, orgulhosas dessa identidade, recusando o seu desaparecimento por entre as brumas da História. Ocasionalmente, no entanto, o apelo do vil metal chama com um trompete e a identidade comum senta-se no lugar de passageiro em sono que ronca. Foi o que aconteceu no primeiro local que visito na zona histórico, o Bazar de Meidani. Outrora, foi o mais importante dos postos comerciais que se localizavam na praça que lhe dá o nome, o grande centro de compra e venda da velha Tbilisi. Hoje, mantém o local, um túnel subterrâneo por onde se distribuem pontos de venda; mas atravessá-lo, seduzido por música local que acredito passar numa versão do “Oceano Pacífico” autóctone – que tomará aqui porventura o nome de “Mar Negro” – e o aspecto impecável de quem vendeu a alma ao Diabo via Loja do Gato Preto, com um toque de tijoleira a fingir o antigo e mobiliário a pedir designação de Vintage, não é de todo o que já encontrei de genuíno por outros pontos da Ásia onde o comércio continental ainda se faz sentir com uma força que treme. Começo a temer que afinal, para lá de fantasmas do genuíno, vá encontrar demónios do consumismo.

                                   

No entanto, nem sempre o que é antigo salva a alma de um local. Noto que, espalhadas pelas paredes e muros, um artista local chamado Goshaart tirou umas tardes e noites do seu tempo para enfeitar as ruas e becos com pinturas, muitas delas alusivas a clássicos da Sétima Arte. Noto uma obsessão com a saga “Alien”, o que só lhe dá crédito na minha caderneta bancária. Misturando xenomorfos e gatos, esta pessoa lava-me um bocadinho o mau gosto deixado pela visitar a Meidani e os meus passos não se perde, mas encontram-se de súbito na zona das termas de Tbilisi. O papel lendário destas águas já foi referido, mas é apenas quando se visita esta zona da cidade que se entende o quanto o acto de alapar num tanque de água quente está enraizado em quem vive e sobrevive na cidade. É tão georgiano quanto um kachapuri, vender efígies de Estaline ou conduzir sem qualquer respeito pelo código da estrada (spoiler alert). O nome da capital significa, aliás, “o lugar quente”. Vir aos banhos é um pouco como apertar a mão à cidade e fazer conversa de ocasião para não desapontar um anfitrião. É essencial. Quase todas as termas ficam na mesma zona, o bairro de Abanotubani, colado ao rio e distinguível de imeditado pelo traço dos seus edifícios termas, casas de tijolo basso encimadas por uma cúpula onde uma chaminé revela segredos através de fumo. Preenchidas por buracos que deixam passar a luz, já que tradicionalmente o interior não possui iluminação artificial, é debaixo de terra que a acção acontece. As águas vêm de uma fonte que origina num pequeno ribeiro que ladeia o complexo termal, inserido no meio de outros edifícios locais, e a temperatura ronda os 40 graus. É um bocadinho como ter Beja durante o Verão a escorrer pelas costas. Embora as águas tenham propriedades medicinais, uma boa parte dos visitantes actuais fazem-no pela experiência e pelo ambiente. Mas o seu papel na cultura georgiana, e costumes, é inegável. Ir às termas é o pretexto de vários romances e poemas da literatura nacional e até asiática. Estão abertos durante todo o ano, mas é no Inverno, logicamente, que a procura aumenta. Ao contrário dos banhos mais icónicos de cidades como Budapeste e Istambul, os de Tbilisi não são spas. As pessoas não vêm aqui para ser apaparicadas, mas sim por questões de saúde e higiene. A pessoa em questão despoja-se do vestuário e instala-se ao natural numa sala que pode ou não se partilhada. A actividade termal tem divisão sexual por questões de decoro, excepto se optarmos por uma sala privada, onde cada um pode aquecer com a cara metade sem que ninguém tenha alguma coisa a ver com isso. Se te sentires um conde abaronado, podes pedir um tratamentozinho medicinal mais relaxado, proporcionado por um ou uma Mekise. Esta pessoa, especializada em manusear o teu corpo da mesma forma que eu trato os lençóis da minha cama quando tenho de enfiá-los na máquina de lavar, uma massagem vigorosa para remover a pele morta e assim contribuir para a saúde da tua epiderme, que se fores bem a ver, merece plenamente, pois tem de te aturar durante o dia inteiro.

                                     

Não as experimentamos, mas do que leio de experiências alheias posteriormente, fico arrependido. Observo-as do exterior e tomamos um caminho que passa por entre os vários complexos de banhos. Encostada ao espaço, a mesquita de Jumah não toma conta da estranheza da sua presença, espaço muçulmano em terra de fortes crenças cristãs. É o único espaço de culto islâmico em Tbilisi, herança sunita do tempo dos Otomanos. Sofrendo do mesmo processo de construção e reconstrução que marcou todos os edifícios da cidade, deve a sua sobrevivência à devoção de um milionário azeri que financiou a sua reconstrução. Misturando arquitectura árabe e neogótica, a sua fachada em grande arco, cobertas de pequenos azulejos de azul do mar, combinando com o ribeiro que a separa das termas, convida à entrada. É também um símbolo de união numa cidade multi-cultural. Que eu saiba, é a única mesquita no mundo que recebe Sunitas e Xiitas, dois ramos da religião muçulmana tantas vezes em conflito e recusando entendimentos. Quando a mesquita xiita foi destruída aquando a construção da ponte Metekhi, estes ficaram sem lugar de oração. Os Sunitas abriram Jumah aos seus adversários doutrinários e desde então, ambos os grupos partilham o espaço sem conflito aparente. O caminho segue o curso de água para longe do rio. Está acimentado e tem claramente um destino. É aqui que o leviatã do turismo de plástico assoma de novo, entre gente com vestes tradicionais à procura de um cobre mais através da sua presença ou de folclore bacoco e ponde carregadas de cadeados, celebrando o amor e também as falhas de engenharia que um dia provocarão lesões graves a alguém no leito do ribeiro. Fica evidente qual é o destino desta via sacra penitencial do vil metal. A alguns metros, vejo uma bonita cascata e como já aprendi noutras andanças, não há beleza natural que não possa ser estragada por gente sem outra sensibilidade que não seja o vazio. Um par de jovens espera o turista com bicharada, um falcão e um macaquinho. Já vi disto no Peru, mas aí usavam lamas e vicunhas. Fazem-nos sempre sinal a indicar a oportunidade fotográfica. Damos uma notinha, tiramos uma foto com o bicho, ficamos ambos contentes. Só que não. Na minha cara, veem um cruzamento estranho entre o doutor House e o Wolverine e a minha máquina fotográfica vira-se para a água que cai pela rocha. Três polícias vigiam o espaço, aos quais se junta um quarto. Fico com a ideia de que este ponto é o perfeito local de ócio para as forças de autoridade locais e que algures noutros pontos da cidade, criminosos marcam os horários da sua actividade pelo trânsito dos senhores agentes junto à cascata. Se o fazem, são espertos. Olho para esta garganta de pedra e imagino, algures em séculos passados, mulheres lavando aqui a roupa à mão. Do que li na minha pesquisa prévia, mães de família costumavam passear por aqui como olheiras de futuras esposas para os seus filhos, numa versão sentimental do jogo Championship Manager aplicada à actividade matrimonial. Procuravam porventura qualidades úteis a uma esposa, como a destreza na aplicação de sabão ou a assertividade quando se curtem lençóis contra calhaus para tirar as nódoas mais rapidamente. Imagino-as a registar nomes num bloco de notas e a comparar as melhores contratações possíveis umas com as outras. Tendo em conta os costumes religiosos locais, duvido que as jogadoras pudessem ser contratadas com opção de empréstimo.

                                     

Depois de passarmos pela sinagoga de Tbilisi, não muito distante da mesquita a cuja porta estivemos – provando que estas duas religiões do livro não se largam nem por um bocadinho – a ideia é batermos à porta de um curioso museu: o das Relações Acabadas. Apropriadamente, dá-nos uma tampa. Está fechado. O motivo tem menos a ver com o nosso desamor e mais pela arquitectura do próprio edifício, que conserva muitos traços das casas civis soviéticas. O uso da madeira, a varanda que sai para o exterior suportada por vigas, duas assoalhadas com divisões encabeçadas umas por sobre as outras. Mas depois de a Georgia acabar a sua relação com a URSS, é apropriado. O projecto foi iniciado por um casal croata, Olinka e Drazen, e é um dos poucos, talvez único, núcleo museológico cujo espólio reunido depende totalmente de crowdfunding. Os objectos em exposição são enviados por quem quiser, se onde quiser, e dizem respeito a esse momento sempre mágico e inesquecível que é o fim de um relacionamento amoroso. Do exterior, não consigo vislumbrar qualquer bulldozer, mas acredito que exista por lá um. Pelo menos, é assim que me costumo sentir quando me partem o coração. As pessoas enviam os objectos para se livrar da sua presença ou então porque têm um valor sentimental profundo que sobrevive ao trauma da separação. O amor e o seu fim são ecuménicos, afinal, um pouco como Tbilisi. Atravessam origens geográficas e crenças no Além, atravessam diferenças de carácter e disposição, atravessam barreiras sociais e culturais. Algures, alguém já foi atropelado por esse TGV que é a decepção emocional. As relações não são apenas amorosas. Podem ser familiares ou de amizade. O Amor tem muitas formas de se exprimir. Apesar de o conceito ter começado na Croácia, rapidamente se alargou pelo mundo. Existem sucursais em São Francisco, Singapura, Istambul, Cidade do Cabo ou Buenos Aires, para dar alguns exemplos. Descubro mais tarde que o mais recente abriu em Portugal, na cidade de Aveiro. Talvez porque é fácil afogar a tristeza com uma caixa de ovos moles; ou porque certos amores e desamores são um pouco como um moliceiro esburacado, prontinho a repousar no fundo da ria local.

                                       

Por entre ruas estreitas e becos desavindos, onde vários estilos e almas se dardejam e gotejam em trocas de séculos comuns, andamos um pouco sem rumo. A zona histórica de Tbilisi é de uma decadência com classe e personalidade, onde até mesmo as ruínas, num orgulho muito próprio, como quem cai pelas escadas abaixo de fraque e cartola, têm muito para ver e para reter. A cidade parece desaparecer e morrer, mas com o sentido de humor de Oscar Wilde que no seu último fôlego, topando o papel de parede do seu quarto, proclamou: “Bem, um de nós tem de ir embora”. Noutras cidades, esta morte seria real; mas porque o Turismo é hoje um importante factor monetário, alguém algures elaborou um projecto que não está isolado: a certa altura, reparamos que há um extenso conjunto de obras públicas que visa recuperar alguns edifícios antigos e abandonados. Nalgumas zonas até já se observam os seus efeitos. O resultado, por uma vez, satisfaz. O respeito pelo desenho original é notório, a réplica dos elementos decorativos total, o charme do século XIX não está presente, mas ainda assim faz uma aparição especial. Há uma limpeza que se deve claramente à modernidade, mas o desenho neo-gótico e os elementos arabescos e até soviéticos reconhecíveis. Novamente, Tbilisi parece uma cidade deLorean, viajando no tempo, uma cabine telefónica azul na qual esperamos encontrar um Doctor Who falando um idioma que ninguém reconhece e cuja escrita se nos escapa. Há urbes dominadas por monumentos de espanto ou por uma vida cultural intransigente na sua dinâmica. Outras atraem-nos pelo seu esmagador tamanho; mas Tbilisi é fascinante nessa sanfona existencial que propele para o futuro com um motor do passado. O presente não parece bem existir, é um estado temporário por definição, mas também necessidade. A capital quer-se bem lá à frente, mas deixar o que a fez para trás. Reconhece o que a faz forte, mantém o que o visitante procura e os habitantes de acostumaram a ter e a chamar de seu. Se a ligação às tradições e o conservadorismo por criar por vezes um ambiente hostil à diferença, por outro lado mantém este vínculo que vemos nas casas de muitas cores, verdes amarelas e azuis, que vão surgindo numa das ruas mais antigas da cidade e que desemboca na Abesadze, uma via que desce quase directamente para a principal rotunda de Tbilisi.

                                                       

Não é só o tempo a dar horas, também a barriga. Descemos a Abesadze, abstraída de trânsito, procurando um espaço agradável para o nosso primeiro almoço na Georgia. No trajecto, passamos por uma igreja reconhecidamente católico. Posso ser agnóstico, mas 18 anos de educação católica não se atiram assim à rua. É o maior templo local desta confissão religiosa, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção., mas a zona onde nos encontramos tem sido historicamente o bairro católico. Já aqui existiu um mosteiro dominicano e também uma outra catedral, a da Anunciação, bastião católico numa terra dominada por muçulmanos. Esta versão foi construída apenas no século XIX e durou apenas algumas décadas, porque quando a URSS engoliu o país, o culto foi proibido e a igreja fechada. Apenas em 1993 houve a reabertura e desde então que vai funcionando. Entramos, apenas com alguma curiosidade. A decoração é relativamente simples, com alguns candelabros dourados e uma estátua da Virgem segurando o Menino Jesus e denunciando o orago do templo. Nas paredes laterais, encontram-se alguns baixo-relevos. Parte do grupo indaga sobre o que significam. O meu tempo no lado crístico da Força leva-me a identificar de imediato as estações da Via Sacra. À entrada, Cristo é criança; mas como em quase tudo o que envolve o Cristianismo, a Morte é o tema central e forte. Depois de termos caminhado durante toda a manhã, sentamo-nos em descanso, no silêncio. Contemplo um pouco e respiro mais pausadamente. Penso no Tempo, no Espaço e nas dimensões de Tbilisi, outras e de outrem. Quero filosofar e reflectir, quero rasgar o cosmos com grandes conclusões, mas a minha cabeça é sempre trazida ao seu verdadeiro e derradeiro valor pelo órgão que verdadeiramente manda nas minhas vontades: o meu estômago. Vai ressonando ausências. Uma relação acabada com a comida. É necessário procurar um poiso para acalmá-lo. De outra forma, passarei a tarde a caminhar torto em desfalecimento.

Apropriadamente, o restaurante que encontramos é a perfeita reflexão de um desfalecimento. Mas isso é uma história para a próxima semana.

segunda-feira, agosto 23, 2021

Georgia on my blog 2: Penitência


Para alguém a quem é regularmente requisitado um relato das viagens que faz, sou um péssimo viajante. Digo-o várias vezes e praticamente ninguém acredita. Mas é verdade. Os grandes viajantes, pelo menos aqueles que leio e que conheço e que sigo, têm um grande sentido de aventuras e disponibilidade. Alinham em tudo e arriscam, são arrojados, estão lá para disfrutar das diferenças. Eu pertenço a um clube diferente, que não tem todas as modalidades; e uma delas é a da alimentação. Dizem que a comida é uma óptima maneira de percorrer um novo país, mas aí sou turista de sofá. Tenho vários problemas de gosto e desgosto, desgosto na maioria, que me cortam a iniciativa no que à culinária concerne. Petisco aqui e ali, mas com o cuidado de um celíaco deixado numa feira de francesinhas. Mas gosto de saber o que é o quê, os ingredientes, a alma de um país nos excessos e ascetismos alimentares; e até mais do que ns restaurantes ou bancas de rua, um bom método de conhecê-los é através dos pequenos-almoços nos hotéis onde durmo. Invariavelmente, há um buffet onde o hóspede pode livremente escolher o que mete na pança. Em quantidade e género. O “Brim”, o nosso primeiro hotel na Geórgia, oferece uma vasta gama de panificação, desde o universal pão de forma até outros de sementes ou mistos. Há também panquecas para gulosos. O queijo abunda, juntamente com os enchidos, mas há também pratos com quadrados de manteiga e vários potes de doce. A fruta faz-se representar pela família dos melões, em três géneros. Para beber, há café, chás vários e noto que existe o hábito de beber o leite frio, não quente, e se o quisermos, temos mesmo de pedir, não está disponível para consumo imediato. Presumo que não seja parte tão integral dos pequenos-almoços caucasianos como dos nossos. Há alguns bolos e tartes também, que considero sábio afastar-me logo na minha estreia. Um contacto medido, calculado. O suficiente para alimentar o corpo para um dia longo, cansativo, de tonificação das pernas. Sento-me algures juntos dos meus companheiros e viagem. Optei por pão de sementes com manteiga e uma caneca de leite. A simplicidade que Buda tão bem apregoava. Talvez Buda fosse um cobardolas alimentar como eu. Os historiadores deviam pesquisar sobre isso.

À saída do hotel, é visível o Palácio da Presidência da Georgia e uma rua que desce em direcção ao centro da cidade. Mas a opção é subir. A uma certa distância, avisto uma cruz no topo de um texto triangular muito angulado. É a pontinha da Igreja da Santíssima Trindade de Tbilisi, conhecida popularmente por Sabema. Os georgianos são uma população profundamente religiosa, em sentimento e em preconceito. Semanas antes de ter aqui chegado, uma marcha do orgulho gay foi cancelada porque os seus organizadores foram atacados por elementos da extrema-direita política local, provando para lá de quaisquer dúvidas o quanto os partidos de extrema-direita têm lugar numa sociedade democrática. A marcha fazia parte de um evento de cinco dias, organizado para celebrar as várias e distintas identidades sexuais do país. Indivíduos menos abertos à iniciativa simplesmente invadiram o escritório dos organizadores, num terceiro andar, uma boa parte dos sevandijas trepando as paredes exteriores, partindo tudo, agredindo gente – incluindo jornalistas – e queimando os símbolos identificativos da comunidade gay. Não é como se o ataque fosse inesperado u até uma aberração dentro dos sinais que o Governo dera. O primeiro-ministro do país, Irakli Gharibahvili, avisara que tais demonstrações de orgulho seriam vistas como inaceitáveis para a generalidade dos habitantes do país. A Igreja Ortodoxa, principal entidade religiosa da nação, invocara um dia nacional de oração contra a marcha, como se algures uma entidade divina tivesse feito da sua vida uma missão contra quem é diferente. A ironia maior é que apesar de tudo, Tbisili tem uma orgulhosa comunidade gay, sem grande medo de demonstrá-lo em público. Nos dias que passei na cidade, vi várias vezes casais de pessoas do mesmo sexo passeando de mão dado, beijando-se e acariciando-se em público; e os anos anteriores viram marchas e festivais de orgulho desenrolando-se na cidade. Ocasionalmente com problemas, outras vezes pacificamente. Mas a estratégia de quem usa a violência para calar o que se celebra na diferença é precisamente obrigar a esconder, a ocultar… o que nunca deu bom resultado, pelo que sei da História. Quase como se a ignorância fosse morte, e em várias maneiras até, estes ogres são prova disso. Os ogres em questão mexem-se no espectro da extrema-direita e nas mangas da Igreja Ortodoxa nacional, que a pretexto de valores tradicionais e outros que, baseados num livros escrito há milhares de anos por povos antigos com uma concepção de vida muito diferente da nossa, são arcaicos e retrógrados, pretendem impor uma visão do mundo que nem sequer se pode chamar de antiquada, visto que até povos antiquados como os Gregos e os Romanos a aceitavam.

A Igreja da Santíssima Trindade é de 2004, recente para os padrões dos grandes edifícios religiosos que conhecemos; mas é um dos mais largos edifícios religiosos do mundo e a terceira catedral ortodoxa mais alta de toda a cristandade. Sendo recente, a ideia foi sintetizar no seu desenho algumas das grandes tendências da monumentalidade da fé georgiana. A início da sua construção, em 1989, marcou uma afirmação da identidade nacional, baseada na religião, contra a opressão soviética e num país que adoptou uma bandeira com cinco cruzes de São Jorge, não é difícil perceber a motivação e o sucesso da escolha. Porque a minha religião é melhor que a dos outros, o Patriarcado de Tbilisi decidiu destruir um cemitério arménio que se encontrava no local, que por sua vez já tinha sido vandalizado pelos soviéticos. É de notar que os Arménios são ortodoxos, mas de um ramo diferente dos georgianos. Os países são vizinhos e, no que talvez não seja coincidência, ambos reclamam para si o título de primeiro país cristão em toda a História. Como o Cristianismo revela paz e amor, claro que os Georgianos optam pelo preconceito e desprezo. É algo tão velho quanto o próprio tempo e chama-se subjectividade. Claro que Cristo falava da amizade entre os povos, mas será que alguma vez conheceu um Arménio? Pois. Portanto, a Georgia sentiu-se legitimada a destruir um importante património histórico e espiritual num bairro historicamente arménio. Acho sempre curioso como a construção de um edifício simbólico pode reflectir o espírito de uma comunidade, a sua caminhada; e concretização desta Igreja acompanhou os avanços e recuos do progresso da Georgia, dentro dos seus problemas e tumultos e guerra civil, avançando e parando conforme os ímpetos da estabilidade. Daí só ter ficado completada em 2004. É estranhamente simples nas suas linhas. O complexo que a rodeia inclui as residência do Patriarca de Tbilisi, um jardim, um mosteiro, um seminário e outra logística de apoio a fiéis e peregrinos. Há um portal de entrada ainda longe da própria igreja e temos de percorrer a distância que os separa agredidos pelo sol da manhã, quente, deixando antecipar um dia de calor abafado. Ainda são nove e meia da manhã e já estou a suar como se fosse um gato num bairro recheado de restaurantes chineses.

Depois de algumas fotos, ouço um murmúrio grave e com o ritmo regular de um metrónomo vocal. Não reconheço a língua, como tal deve ser georgiano. Sinto-o planando do interior do edifício e não estou sozinho. À entrada, duas senhoras idosas vestidas de preto parecem pensar sobre as suas escolhas de vida; e o negro é a cor que mais se repete no vestuário de quem está e de quem chega. O espaço é largo e muito alto, sem decoração na pedra que não linhas directas, verticais, relevadas. Em cada uma das seis colunas interiores, olha-nos o desenho berrante de um ícone ortodoxo, invariavelmente um idoso de túnica azul segurando uma relíquia e um livro com os olhos tenebrosos de quem julga sem vergonha, de quem pede penitência e não dá clemência, só oportunidade. Na parede sobre o altar, há uma gigante versão de um destes ícones, um imenso homem de vermelho e ciano que ergue a mão em bênção. É Jesus, o Nazareno. Por debaixo, numa versão menor, o patrão maior do Cristianismo ensina alguns históricos patriarcas ortodoxos, provavelmente na melhor maneira de conseguir comida infinita. Enquanto capto estes pormenores, os cânticos tornam-se opressivos, inescapáveis, pesados. A ideia parece são ser celebrar, mas punir. Vigiar e punir. Não há instrumentos, apenas vozes de homens, das profundidades de uma caverna já de si profunda, clamando num idioma que me é estranho pela vibração do arrependimento. Os fiéis presentes alternam entre o macilento e o dramático. Enquanto passeio, não ouso fotografar, a não se alguns cliques discretos que carrego com a máquina junto ao peito. Não sou cristão, mas momentos de devoção carregada de desespero de alguma forma comovem-me num certo antro cá dentro que não sei bem como apagar. Tenho simpatia por quem chega ao fim do caminho e só encontra de bom para si o inacreditável. É preciso atingir um certo ponto de angústia, ou de crença inquestionável, para se ser religioso. As instituições religiosas costuma jogar com isso, com essas duas capacidades: a de perder a esperança num saco roto ou a de se entregar sem qualquer tipo de hesitação ao que é incompreensível. Sei-o racionalmente, devia olhar para estas pessoas como papalvos, e sei que parte de mim o faz e fará e está a fazer enquanto escrevo isto. Mas quando beijam os quadros e as figuras com devoção, e total desrespeito para com as regras higiénicas contra a COVID-19, quando estacam minutos desfilantes numa tentativa de desfibrilhar a vida pelas letras que constam num pequeno livro de oração, quando mulheres entram de cabeça coberta numa reverência maquinal, há algo que não se consegue bem transmitir nas palavras e que só as grandes mentiras permitem: a comunhão de uma ilusão que não percebe nem entende, mas que se abraça sob pena de vivermos mais solitários, mais abandonados. Dando uma volta a pé pelo espaço da igreja, vejo bastantes pessoas. Sou apertado por cada nota musical cantada, num momento que me é raro deixo-me deslizar à maneira de uma bola que num jogo de bilhar se encaminha para o buraco, mas bate três vezes nos cantos e sai. Observo, tentando não invadir o espaço de cada um. Reparo que sentado uma cadeira, um homem ricamente vestido, preside a tudo com uma cara menos beatífica e mais feroz. Barba de derviche, longa e grisalha, óculos redondos e uma postura de quem está muito para lá de oferecer consolo. Sinto que os ícones espalhados, atrás de vidros, limitados por molduras, oferecem mais empatia que aquela figura. O momento é solene, tem a sua beleza, mas até naquele antro interior cuja localização me é desconhecida, entendo que o que vejo no mundo está para lá das vibrações da voz que empurra para as brasas. Sem pressa, com paciência, encaminho-me para a saída. O espaço luminoso não esconde as ondas tenebrosas de uma ortodoxia escura, à moda eslava, mas perdida entre a Europa e a Ásia. Um cristianismo feito por gente dura e dada ao sacrifício, cuja História está carregada de episódios de abnegação perante uma força maior, como se o indivíduo se submetesse a vontades insondáveis de morte alheira para a celebração de valores universais se o universo estivesse mais carregado de anãs vermelhas de sangue do que de supernovas de esperança. Oferecem algo naquela igreja, mas não vou aceitá-lo, porque há algo em mim que se repele quando vê mulheres cobertas de negro da cabeça aos pés como se essa fosse a sua única missão enquanto vivas. Antes de me retirar, a última imagem que me fica é a de uma idosa encostada a uma coluna, em transe, com um caderninho nas mãos que lê em sofreguidão existencial. As carnes da cara afundam nos espaços entre os ossos do crânio e por momentos, sinto que quanto mais reza, mais paga em saúde física. Dias depois de ter voltado de viagem, a face daquela pessoa ainda me lança em inquietações sobre o mundo. Quando li pela primeira vez sobre a vitória dos Taliban em Cabul, foi nela que pensei. Gente que parece viver, mas que na verdade se esfuma numa altar pírrico como filhos de um deus menor, desconhecido e inconcebível no seu desprezo e da sua indiferença perante o que é realmente importante. Nós.

                                     

Uma rua, do nosso lado esquerdo, atravessa um bairro antigo de Tbilisi e é por ela que vamos aceder ao centro da capital. Casas velhas e decrépitas alternam com casas destroçadas. Tijolos persas associam-se a novas cores berrantes e há, espreitando de portas espaçadas, desejos de transformação turística. Existem ocasionais negócios, mas acima de tudo a confusão que aprendi a associar às cidades asiáticas, um caos organizado onde todos se entendem, menos os pobres estrangeiros que não receberam o manual. A certo ponto sinto-me a alucinar, porque juro ter visto condutores em posições diferentes de veículos. Uns guiando à esquerda, outros à direita; mas percebo que é o comum, que os carros com volante destro são mais baratos e afinal, uma das grandes capacidades do ser humano é a adaptação. Passamos por um pequeno parque onde velhotes jogam à sueca e continuamos a descer, ladeados por trânsito aleatório até um pequeno miradouro que oferece uma vista de grande quilate sobre o parque Rike, um dos locais mais frequentados de Tbilisi. Situado junto ao rio Kura, é um espaço para se estar e ficar, muito verde, com fontes luminosas, um skate park e várias construções de aspecto modernaço. É um dos símbolos da transformação da Georgia numa pátria de inspiração ocidental, europeia, contemporânea. Tenta fazer pelos seus habitantes o que a perseguição de gays desfaz rapidamente. O parque têm outros objectivos simbólicos. Visto numa perspectiva aérea, e é possível fazê-lo através de um balão estacionado mesmo no centro da área, cria um mapa em grande escala da Georgia, com as suas linhas fronteiriças regionais. Espalhados pelo espaço, há objectos curiosos e claramente colocados para oportunidades fotográficas: um grande piano branco de mármore, um tabuleiro de xadrez gigante com peças a condizer e uma sala de espectáculos construída para se destacar, pois termina em dois mastodônticos tubos de metal que dominam o lado leste do parque. Brincam com a opinião alheia acerca da sua harmonia ou cacofonia relativamente ao espaço. Mas destacam-se e convidam-nos a explorar e ver. Todo este espaço chama-se, apropriadamente, a Praça da Europa. É um piscar de olho à União Europeia, um convite ao convite. Uma demonstração de simpatia pela Europa ou a reflexão da ideia de que se a Polónia e a Hungria podem fazer parte dos valores europeus, porque é que não temos os mesmo direito?

                                   

O miradouro é um varandim onde podemos tirar fotos  e contemplar os elementos mais evidentes do parque e também a outra margem do rio, que visitaremos de seguida e inclui o que de mais importante compõe o seu centro histórico. É o nosso objectivo seguinte. Temos de descer umas escadas íngremes, atravessar o parque e depois o rio. Vou presumir, porque adoro presumir sem certezas, de que existe uma ponte para atravessar. É a beleza da presunção do que não se sabe, a esperança e a fé de que existe. Enquanto caminhamos, vejo crianças brincando, artistas de rua, vendilhões que não do templo. Neste parque, Tbilisi é uma cidade de tempo que há-de vir e não o amontoado confuso de casas inabitáveis onde mora gente, de poeira e sujidade que vi no caminho que desci. Da mesma forma que se pode perceber muita coisa sobre um por aquilo que come, também se intui a ideia que fazem de si através das suas cidades. Esta capital procura-se num meio caminho entre o que o passado fez e o que um futuro pode trazr de novo ou manter de antigo. O parque Rike e a Igreja da Santíssima Trindade são ambas modernas, mas não da mesma maneira. Um abraça a ruptura, a outra mantém uma continuidade de algo necessário, mas pernicioso. Como a paixão da qual não desligamos e nos vai mirrando. Talvez seja assim a Georgia. Um jogo de corda que puxa de um lado, puxa de outro, mas não parte nem acaba. Só estica e vai esticando. Numa encruzilhada que não sei bem onde vai dar; mas numa cidade que ainda que dividida, tem muita personalidade, sinto-me com vontade, apetite e abertura de mente para tentar descobrir o que mais há. Se sou renitente em encher o bandulho de comida internacional, dou graças a esses deuses da viagem chamados curiosidade e caminhada de ser felizmente muito guloso nos cozinhados da descoberta.

segunda-feira, agosto 16, 2021

Georgia on my blog 1 - Reinícios


 Portanto, a bem da honestidade que sempre caracteriza as crónicas de viagem que escrevo, devo informar que este não era o plano original. Vamos rumar ao Cáucaso, mas era suposta, depois de duas semanas com os olhos e os pés na Ásia, uma viragem radical na bússola e aterrar na América do Sul. Uma andança pelos Andes, bulindo na Bolívia com um desvio pelo Chile, na pontinha que abarca o Atacama. Duas semanas, montanha da boa e altitude para me dar cabo das articulações. No entanto, desde as minhas desventuras pela terra do tio Jinping, o Império do Meio passou a ser mais falado. Em primeiro, porque finalmente deu jeito à comunidade internacional usar os uigures como arma de arremesso contra a China, depois de ter feito aqui o alerta. Não estou a dizer que o Guterres fala comigo todos os dias, mas… não, não fala. Bolas, se quiser missa, há muito por onde escolher em Coimbra. E depois, algures por volta de Dezembro de 2019, uma história passou rapidamente de risota para pânico generalizado sob a forma de um vírus saído de Wuhan, anónimo, manhoso, uma praga respiratória mais parida no Extremo Oriente. Mas ao contrário de gripes aviárias e suínas, esta pegou mesmo. Era uma questão de tempo até a nossa própria incúria como espécie de pináculo da evolução nos apanhar. Os Gregos chamam-lhe “hubris”; e esta “hubris”, que também virou “nemesis”, condiciona as nossas vidas em fluxo temporal e sem pedir licença. Vai para ano e meio. Daí que no ano passado tenha ficado em terra; e daí que mesmo este ano, até um mês antes de ter  comprado a viagem, também temesse mais uma translação planetária de arranhar os braços, qual viajómano sem dose. Mas tudo se deu pelo melhor e tive carta branca e certificado preenchido. Só mudou o destino. Dos Andes, mudei para o Cáucaso.

Porquê a Georgia? A bem dizer, estava na minha ideia há alguns tempos. A divisão geográfica entre Europa e Ásia é um daqueles territórios ambíguos de identidade, fecundos de histórias e Histórias. Ter sido passadeira de impérios e povos, culturas várias de fusões únicas torna esta região que vai do Mediterrâneo às fronteiras do Irão numa espécie de caixinha de brinquedos partidos, mas valiosos. Ainda hoje o território georgiano está marcado pelas múltiplas identidades que ficaram destes passeios. A Abecássia e a Ossétia do Sul são duas nações sem estado, que reclama uma existência separada da Geórgia e que ainda hoje mantêm uma disputa na sua independência. Falaremos delas mais à frente. São ainda resquícios de uma ocupação soviética longa e que ainda hoje marca uma boa parte do país, ainda vivendo no estado mental russo, num espírito eslavófilo impossível de apagar. Percorrer o país é assistir ao confronto entre esse passado e um desejo de fuga para a frente, que como na esmagadora maioria dos países europeus de Leste que fizeram parte do sistema comunista, encontra abrigo e desespero na adesão à UE. Mas o passado da Georgia é muito mais antigo do que a ideologia de Lenine. Entre a realidade história e o planalto mítico, o país chama a sai múltiplas heranças, quase todas com a marca ocidental. Numa bruma de imaginação, era aqui que estava guardado o tosão de ouro buscado por Jasão; e também no Cáucaso encontramos o local de tortura bárbara a que foi sujeito Prometeu, o Titã que ousou a entrega do fogo divino da inteligência aos homens e que por isso foi punido a ser parcialmente comido por uma águia todos os dias durantes séculos. Os achados arqueológicos, dizem-nos, no entanto, que a região era habitada desde o Paleolítico e que foi uma das primeiras regiões do mundo a produzir vinho – os georgianos dirão que foi a primeira. A alguns reinos temporários, como Colchis ou a Iberia (sim, Iberia, leram bem), seguiu-se uma ocupação romana tensa, com disputas permanentes com os Partios, antepassados dos actuais iranianos. A área, plena de cultos pagãos, foi cristianizada em 337 e desde então, orgulha-se de se proclamar como a mais antiga nação cristã do planeta. Como verão, este é um dos suportes maiores da identidade do país. Depois de uma ocupação muçulmana, a Idade Média trouxe nos séculos XII e XIII um período de esplendor nas artes, ciências e política nos reinados de David II e da sua neta Tamar; mas durou pouco e os séculos seguintes viram este território a soçobrar primeiro perante os Otomanos e depois o Império Russo. Foi na esfera deste último que a Georgia se manteve até 1991 e é o bafo deste último que sopra ocasionalmente no pescoço dos georgianos quando os senhores de Moscovo se recordam do quanto gostam de aventuras expansionistas. Hoje, Salome Zurabshvilli é a presidente do país e um raro caso de uma mulher liderando um país numa região marcada a fundo por fundamentalismos religiosos que por natureza não têm grande amor pela plenitude da Mulher.

Acima de tudo, e algo que me interessava por demais depois da experiência chinesa, a Georgia é um país onde é possível andar com liberdade e existe uma certeza relativa de que não me estão a espiar constantemente. Ainda que esteja vacinado e, como sabem, o meu chip de 5G me denuncie aos overlords do mundo. Depois de um ano parado, não estava com apetite para grandes aventuras e risco. Nove dias no Cáucaso, relativamente interessantes e com bastantes oportunidade fotográficas, apelavam-me o suficiente. Para mais, ainda me permitia presenciar o aniversário da minha sobrinha, algo que lhe prometera. Ainda que a Beatriz não saiba distinguir, por ora, “promessa” de “à pressa”, era para mim importante, visto que sou tio e padrinho e acima de tudo, palhaço da garota. É um cargo importante. Encaro tudo com alguma leveza: levo apenas dois livros e alguns podcasts para me entreter. As viagens não serão longas e com um bocado de sorte, ainda passo pelas brasas. Calha que o dia da viagem seja precedido por uma noite muito mal dormida. Quando chego ao aeroporto e me despeço da Catarina, ainda me sinto meio grogue. Não ao ponto de me sentir a desmaiar quando o avião descolar, mas já naquele ponto onde a realidade é apenas um conceito desfiado a lã. Os protocolos de segurança parecem-me, por isso, normais ainda que não o sejam. A minha temperatura é medida várias vezes no aeroporto e sinto que sou mesmo uma brasa e toda a gente o nota. O certificado é obrigatório em todos os pontos e a certa altura, julgo até que me vão perguntar pela cor dos boxers e se tal bate certo com o lote da vacina que consta do ficheiro. Quando encontro o grupo com o qual vou viajar, uma novidade: algures, quatro portas abaixo da nossa, está uma conhecida figura. José Sócrates. Ex-primeiro ministro, actual bandido. Se calhar, quer roubar milhas aéreas às pessoas, sob o pretexto que são todas suas amigas e que no fundo, é apenas um empréstimo. Talvez venha inspeccionar se os aviões cumprem as regras relativamente ao combate às alterações climáticas. Afinal, Sócrates foi ministro do Ambiente, uma pasta que pertenceu a indivíduos honestos e ligados à causa pública, como Isaltino Morais ou Arlindo da Cunha; mentes tão brilhantes e progressistas quanto Assunção Cristas e Luís Nobre Guedes; ou esse monstro da decência que é o corrente João Matos Fernandes, homem que defendendo a causa ecológica, quer escavações a céu aberto no único parque natural português e um aeroporto numa área natural protegida. Não sei mesmo como é que acham Sócrates uma anomalia. Ele apenas fez escola. Veio ao aeroporto certamente para aguçar o seu instinto verde. Sinto a tentação de conversar com ele, de lhe perguntar se é rumor ou realidade que fará com Al Gore uma dupla de forças especiais que, vestida de Capitão Planeta, andará por aí a punir os criminosos do ambiente; e se eventualmente tem mais amigos em Paris ou quem sabe, ruma a Atenas para assumir o manto de filósofo do seu histórico homónimo. Mas fico-me. Reduzido a uma insignificância de aldeão. A única coisa que gamei na vida foi um rebuçado e senti-me culpado. Tenho consciência, claramente não estou na mesma liga de sociopatas compulsivos.

O voo atrasa-se, mas sai. Ao meu lado, um casal português que viaja para Istambul. Têm musiquinha de Lisboa no paleio. Vêem imensos filmes. Aliás, no voo, querem ver um filme e “óvi-lo” também. Mas riem ambos; ela diz que é uma aborrecimento ver filmes, porque mesmo gostando muito acabam sempre por adormecer. Acharam o “Matrix” um tédio, mas aconselho-lhes o “Casablanca” e isto parece ao homem uma ideia xexional. Explico a premissa, falo do Rick Blaine e ele fica convencido. É um cláchico. Tem de ser visto, nem que seja umavez, tudo pegado. Os clássicos são mto importantes e eu concordo. Escusado será dizer que vinte minutos depois, sornam pegados. Tento ler, mas sinto o cansaço a apanhar-me. Opto por um podcast sobre Scorsese mas a meio, sinto que perdi algo. Dormi uns minutos e nem me apercebi. Há anos, isto não aconteceria. Nunca fui de ter posição para dormitar em transportes. Mas hoje a espera foi curta. Talvez seja a idade, talvez tenha de abandonar esta ideia de que ainda sou jovem. Só na cabeça, só nas ideias. Só na imaturidade. Até o tempo parece correr em vez de coçar e estamos a descer para Istambul antes que me aperceba. Algures na memória, recordo-me de um mar turquesa, de pequeninas casas, de barcos vagabundos. Mas não consigo localizar onde. Divago sem voo, o único ar está lá fora e o que respiro é mais ficção do que conhecimento do que sou, de onde estou. Sinto-me ainda mais trocado quando aterramos na grande metrópole turca. Não é a minha primeira vez, mas sinto-me como se fosse. Nada reconheço no aeroporto. Perco-me em mim e no exterior; vejo um enorme painel relativo a Gobekli Tepe, que parece ainda maior perante a pequenez do espaço. O Ataturk, quando aqui estive, pareceu-me bem maior, uma cidadezinha própria. Mas depois de alguns letreiros, percebo que é um novo aeroporto inaugurado em 2018, o terceiro internacional da cidade. É marcado pela celebração a cultura turca. Gobekli Tepe é o expoente maior, prodígio arqueológico descoberto no início do século e que obrigou a rever o que sabíamos acerca da evolução das sociedade humanas. Datado de pelo menos 9000 anos antes de Cristo, é indubitavelmente o local onde se desenvolveu uma cultura complexa e com construções megalíticas dominadoras. Se não era uma cidade, era um espaço religioso vasto. Para terem uma ideia, quando estive na faculdade, a cidade mais antiga do mundo era Jericó, o Çatal Huyuk, conforme os estudiosos. Ambas eram do ano 5000. Ou seja, Gobekli Tepe quase que dobra esta etapa da evolução humana. É um local tremendamente importante e os Turcos, sempre prontos a celebrar-se nacionalmente num onanismo otomano bacoco, aproveitam a boleia e transformam em folclore este importantíssimo achado. O costume em autocracias. Mas o nacionalismo bacoco também nos calha, Portugueses. Na espera pelo voo para Tbilisi, sabemos que Patrícia Mamona ganha medalha de prata no Triplo Salto. Com tudo isto, até me esquecera que há Jogos Olímpicos a decorrer e que Portugal tem um ou outro atleta com qualidade. Nenhum de nós treinou para a medalha, mas congratulamo-nos como se a tivessemos ganhos. Mamona somos nós, nós somos Mamona. Quando digo esta frase na minha mente, soou muito melhor do que ao vê-la escrita agora. Recordo-me da experiência na Ataturk em 2016, nas mulheres tapadas, nas separações claras entre sexos, no domínio óbvio dos homens. Não noto tanto isso desta vez. O Istambul International Airport está mais distante da civilização, talvez seja disso. Talvez seja um hub entre países onde o fantasmas das burkas e da Sharia não esteja tão presente. Ou talvez tenha aparecido na hora da Tolerância e algures depois das oito, apareçam os verdadeiros facínoras.



Duas horas e meia separam-nos da capital georgiana. À noite, a Anatólia é tão obscura quanto o nosso conhecimento sobre as culturas que daqui até às estepes mongóis, assombram a visão do comum ocidental. Não sei o que esperar dos georgianos. Não o mesmo que dos quirguizes, ou sequer dos chineses. Se serão mais europeus, mais asiáticos. Se serão uns mestiços culturais. Perdidos entre dois mundos ou bem encontrados num seu, com parcelinhas de todos os que fizeram destas terras casa temporária e por aqui semearam mais do que vinhas. Consigo ler um pouco durante o voo. Um livro sobre as consequências da Revolução Bolchevique na Ásia Central e os velhos jogos entre os Russos e os Britânicos nesta importante geografia. Os capítulos finais do chamado Grande Jogo. Algures no livro, após a morte de Lenine, Estaline abre caminho para liderar a União Soviético. O paizinho dos povos José nasceu na Georgia, é talvez o mais famoso dos todos os que deram por si vivos neste país. Com o nome de Ioseb Besarionis Jughashvilli, nasceu em Gori. Os mais lúcidos entre nós reconhecem nele um dos homens mais sinistros do século XX, essencial para entender alguns dos seus principais eventos e assustador para quem ainda se impressiona com a crueldade humana. Revelou algo dela quando pôde dispor dos povos da Ásia Central. Teria ainda muito mais para gastar até morrer em 1953; mas a história de Estaline é para ser contada mais à frente. Quando me deparar no impacto desta figura num país em vários episódios, nomeadamente num mercado de rua. Mas é incontornável. Portugal tem a sorte de não ter um Estaline para recordar. Salazar, ditador conservador e de casual e efectivo desprezo por quem pensava diferente, marca-nos pelo seu período de governo, pela repressão e perseguição do que é diferente, pelo atentado contra a liberdade que a sua existência representou na nossa História, pelo tratamento dado aos que vivendo num espaço dito português, eram tudo menos isso no além-mar. Mas no grande contexto da História, é aquilo pelo qual tanto lutou: um provinciano, uma figura paroquial, um idoso desenhado na capa da Time sem expressão mundial. A vilania de Salazar é, como Portugal, nossa e de pouco interesse para os que marcam recordes de vítimas. Estaline está na primeira liga. É um papão do mundo, é verbo de encher, é insulto fácil. Todos sabem que foi Estaline. O que representa verdadeiramente. Alguém tão virulento na sua impiedade, na sua iniquidade, que todo um regime de brutal repressão sentiu necessidade de se afastar e renunciá-lo. Como o apóstolo Pedro fez a Cristo, ele apóstolo misógino e misantropo. O legado deste fantasma é algo com que a Georgia ainda hoje lida. A União Soviética era um espaço único, mas os males são individuais. Estaline não é russo: é georgiano.

A viagem é tranquila. No aeroporto, rapidamente encontramos o caminho para a zona dos passportes. Vou estrear o meu. Uma jovem mulher interroga-me num inglês engasgado. Por debaixo da máscara, fala baixo. Temos de nos repetir várias vezes, mas sorri-me com os olhos várias vezes, pede-me mais documentos, o certiciado. “Welcome to Georgia”, carimba-me e tenho a primeira marca no meu quase imaculado documento de viagens. Há algo no ar e não é o perfume de uma nova terra. Um burburinho de infecção não covidiana preenche as paredes. Não luz nem é ouro, mas revela-se precioso. Enquanto espero a chegada da minha mala, vejo o constante abrir e fechar da porta que dá acesso à entrada do aeroporto. Uma multidão imensa, cheia de cartazes, enche o espaço. Por momentos, comovo-me. Sinto Portugal brilhando alto, o orgulho da nação. Porque só pode ser uma de duas coisas: ou esta imensa turba georgiana quer celebrar connosco a medalha de prata da saltadora Mamona ou, atrevo-me a sonhar, são espectadores fiéis da RTP Internacional. Há uns meses, participei no programa televisiso “Joker” e com certeza sabem que chegava hoje. Querem parabenizar-me, aplaudir-me por não saber qual é o elemento base de uma queijada de Sintra. Levar-me em ombros por ter posto Vasco Palmeirim na ordem ao mostrar-lhe que há uma parvoíce maior para lá de Alvalade e que ele desconhecia. Saudar com aparato militar o entretenimento puro que a minha presença sempre desperta. Com ansiedade mal contida, lágrimas transparentes nos cantos dos olhos, encaminho-me para aquele vasto magote, pronto a abrir os braços, a receber aplausos. Mas desilusão: não é a mim que esperam. O meu rosto não consta nos cartazes, a minha semelhança é pouco com um outro homem que faz dois de mim e veste um kimono. Branco, ainda por cima. É difícil exagerar o número de pessoas que ali estão. São centenas por certo, há grupos folclóricos vestidos a preceito e dando música, bandas filarmónicas, militares em peso com armas carregadas e prontas e render a guarda. Cartazes toscos, demonstrações de admiração popuçar, bandeiras georgianas insufladas de orgulho num quantidade capaz de enciumar Cristiano Ronaldo, melhor ser humano português de toda a História e destinado a trocar de lugar com Afonso Henriques no Panteão de Santa Cruz. Saberei mais tarde que o aparato se destina a receber Lasha Bekauri, judoca que trouxe o ouro de Tóquio a uma nação de 4 milhões de habitantes. Ao todo, o país trouxe 8 medalhas, metade delas no Judo. A de Bekauri foi a primeira de ouro, à qual se seguiu outra no halterofilismo. A luta livre completa o trio de modalidades que trouxeram a glória olímpica. Um país de força e de defesa. Quando Bekauri chegar, verei mais tarde, está-lhe guardada a volta em ombros que julguei minha por conta da aparição que fiz num concurso de cultura geral. Ninguém dá o devido valor aos acumuladores de tralha na cabeça.

Uma viagem de carrinha separa-nos do hotel. São vinte minutos de aceleração até ao centro de Tbilisi. O nosso hotel recebe-nos às onze e meia da noite. Sinto-me meio morto, mas não completamente. O interior é meio bruto, o aproveitamente de uma estrutura industrial. Cinzentos, azuis e esculturas a atirar para o contemporâneo. Mas o pessoal é simpático, prestável, acolhedor. É o nosso primeiro contacto com estas pessoas de um país diferente e saberei que, no geral, é um prenúncio certo. Vou para o quarto. Tbilisi recebe-me abafada, estão quase trinta graus à noite. Da varanda, contemplo uma cidade estranha. Por entre as luzes nocturnas, despontam inércias arquitectónicas que parecem não ter lugar, parecem de outro espaço. Têm cores berrantes, não se escondem nem disfraçam. Tecem as vozes que vêm da rua e escondem a identidade tbilisiana, guardam um mistério que talvez a luz do dia desvende. Depois de alertar os que me são queridos de que tudo correu bem, de que não foi mais este país com nome esquisito a afastar-me do seu convívio, estendo-me na cama, ainda nebuloso, ainda perdido. Talvez por estar numa fronteira, talvez por eu próprio ser fronteira. Entre o que sou e o que quero. Ou talvez esteja a complicar demasiado. Isso seria tão meu que até na Georgia sou capaz de me sentir em casa.

quarta-feira, junho 03, 2020

As andorinhas do meu beiral

Andorinhas e os espinhos de Cristo, conheça a lenda - Meus Animais





A identidade da casa onde cresci tem muito pouco a ver com o número que a burocracia lhe atribuiu e mais com aquilo que os anos lhe foram colando. Nem falo de sujidade, ou de uma fuga de cor que obrigado a uma pintura renovada a cada dez anos - e mudando sempre a tonalidade: nasci numa habitação meio castanha e hoje, quando a refiro a amigos e conhecidos como ponto de orientação, tenho sempre tratá-la pelo amarelo. Aquela cor que se afligiria caso todos gostássemos do mesmo, ao que parece. Mas a memória mais frequente, e hábito reciclável, que mais me recordo de associar a este paralelepípedo com memórias lá dentro coladas é o espectáculo das andorinhas em Primavera. Para aqueles que não sabem do que se trata, importa esclarecer que não falo de caminhando na rua, olhar para o azul do céu e observar, em cruzamentos rápidos de negrume com asas, aves que parecendo perdidas, encontram-se sempre no último segundo da curva da vertigem. Desde que sou eu que as andorinhas regressam, todos os anos, aos seus ninhos de barro germinados nas bordas do meu telhado. Na sua ausência, os ninhos decaem e estragam com a passagem do tempo, as transformações do Inverno. Mas nunca os tirámos. Ficam lá, como referência, e elas voltam todos os anos. Não sei por onde andam no resto do tempo. Os ornitólogos falam em migrações para locais mais quentes, portanto costumo encarar sempre o desaparecimento das andorinhas como uma sabática em África. Renovam o bronze, recarregam baterias, são outras durante seis meses; mas todos os inícios da Primavera, as correntes de ar empurram-nas de regresso a Ceira e processo recomeça. Tapam os buracos com terra e ramos, na azáfama do tempo marcado e contado, da biologia perpétua do ciclo da Terra. Existem ninhos de ambos os lados da moradia e portanto circulam a toda a volta neste trabalho. Ouço-as chilrear, a irrequietude de todo um impulso numa voz que nem sequer canta; e nas manhãs, ou madrugadas que se prolongam quando não consigo dormir, é esse trinado que me indica a chegada da manhã. Dentro dos seus ninhos, já com pequeninas crias que de quando em vez metem a cabecinha de fora dependendo dos pais, anunciam que acordam para o mundo e continuam a sua demanda.

O ciclo das andorinhas sempre fez parte da nossa vida. Não são nossos animais de estimações, mas tratamo-las como tal, porque de maneira a que nos fascinem, existe todo o trabalho sujo por trás. Nem tudo é bonito ou admirável. Manter os ninhos implica deixar o telhado sujo e mesmo na ausência dos pássaros, permanecem ali como lembrança. Nem sequer são objectos bonitos, apenas montes de terra castanha clara que à distância e para um olhar menos treinado, quase parecem colmeias. Quando voltam a ganhar vida, os problemas duplicam. Em minha casa, as andorinhas moram por cima da escada que conduz à porta principal e também numa varanda adjacente à cozinha. São, portanto, locais que frequentamos. A presença constante dos visitantes deixa também outros restos da sua passagem, mais escatológicos, que se amontoam no chão. O trabalho de lavar sobrava sempre para a minha mãe, mangueira em punho, pelo menos uma hora de labuta, porque incluía também a varanda principal da casa, defronte da sala de estar do primeiro andar. Dava trabalho, ela chegava sempre cansa e no tempo de calor, pior ainda, a temperatura tremente juntava-se ao trabalho já de si cansativo. Mas por cima dela, o chilrear daquelas balas com asas não a deixava sozinha. Aqueles pássaros sempre foram para mim coisas diferentes. Nos filmes norte-americanos, há sempre a imagem dos traços na ombreira da porta que permitem visualizar a evolução do crescimento dos garotos. As andorinhas são isso para mim. A minha inocência infantil via nelas apenas animais fofos que animavam a minha vida no seu voo, na sua presença, no seu som. Quando comecei a conhecer mais o mundo e a ciência, percebi porque regressavam todos os anos, o que é uma migração, a diferença entre o Verão e o Inverno. Na minha adolescência, onde o calendário escolar se confunde com o civil, elas eram sempre sinal de fim de aulas próximo e férias de Verão. Na tarde quase noite do meu tempo adolescente, sempre que as observava, perguntava-lhes porque se a vida melhora de facto, se o drama acaba, se algum dia uma rapariga vai olhar para mim da mesma maneira que eu olhava para a Scully. Na minha vida adulta e suas migrações, identificava-me com elas e voltar a casa na Primavera encontrando-as sossegava-me o coração e pregava-me os pés bem no solo, como se de facto regressasse a casa. Aprendi também a suspirar quando via famílias constituídas em ninhos e eu procurando incessantemente alguém com quem partilhar a aventura da minha vida. Elas voltam sempre, mas apenas para me lembrar de que andar em duas pernas é mais complexo do que voar em duas asas. Passaram de simples visitas e reflexos da minha mente. O que também quer dizer muito da minha personalidade e onde ela foi parar.

Quando vejo meio metro de gente chamado Beatriz a apontar indiscriminadamente para o céu britando "Piu piu, piu piu", é um pouco como se recomeçasse o processo. Tal como as andorinhas regressam, aqui em casa o encanto por elas vai migrando e regressando também de cada vez que algum de nós ainda consegue olhá-las com o encanto infantil do fascínio. O seu dedinho aponta, as mãos batem palmas, no meu colo ela ri e diz "piu piu, piu piu", olha em redor e acompanha o seu movimento errático. É feliz. Penso em como nada disto se sucederia se nos tivéssemos dobrado à preguiça. se a minha mãe não suportasse todos os anos o trabalho de limpeza, de manutenção, se todos os anos não se dispusesse a aceitar de novo as andorinhas, não haveria Primavera. Quer dizer, havia, mas com menos flores. Para as coisas boas, é inevitável, o esforço está presente. Sem querer suportar a merda e o esforço de limpá-la, não surge depois a reciclagem do sorriso. A felicidade está tantas vezes ligada ao quanto querermos trabalhar para que aconteça e não simplesmente encantos e ténues acasos do destino que interpretamos como sinais ou inevitabilidades. Ser feliz dá trabalho. Que o digam as andorinhas que todos os anos reconstroem os ninhos sem piar nem queixume. Talvez seja de estar a chegar aos quarenta anos, mas é nisso que agora penso quando as vejo. Há quem tente curar a crise da meia idade com carros novos e cortes de cabelo arriscados. Eu interpreto pássaros e escrevo sobre isso. Podia dar-me para pior.

segunda-feira, maio 18, 2020

Viagens na minha terra


Na Ceira dos anos 80, as escolhas de escola primária eram simples. A principal era a das Vendas de Ceira; aqueles que viviam no outro canto da freguesia invariavelmente entravam na do Cabouco, local onde só pus os pés uma vez na vida e não como estudante; alguns aventuravam-se para outro concelho e acabavam na do Senhor da Serra, território de mitos e lendas que nos chegavam aos ouvidos através de amigos de amigos. Há um lugar afastado do centro, o Carvalho, que teria as suas hipóteses, mas sinceramente só comecei a conhecê-lo bem mais tarde na vida e falava-se entre os adultos por dois motivos: um desastre de aviação militar na década de 50, soprado com respeito a propósito do choque dos aviões com a parede da serra do Carvalho (parece impressionante, mas a serra do Carvalho mal tem 400 metros) numa manhã de nevoeiro. Talvez tenham visto D. Sebastião; e o facto de o Carvalho ser um lugar partilhado entre dois concelhos, Coimbra e Poiares. Dividido ao meio, por escolha da população, ficava longe de igual forma de ambas as sedes de concelho. Sempre achei isso curioso, e imaginava os habitantes daquela terra como uns eremitas, longe do mundo civilizado, como sevandijas das matas, na minha imaginação de criança. Em adulto, descobri que têm uma povoação mesmo ao lado chamada Terreiros de Além, que é das poucas toponímias que conheço a combinar de morte com o título "Indiana Jones e...". A infantil população de Ceira estava espalhada então até aos dez anos, quando as escolhas de carreira escolar começavam a afunilar para Coimbra. Excepto quem andava na escola do Senhor da Serra. Mas essas pessoas, como referi, viviam numa espécie de névoa de mito e lenda, fora do espaço que considerávamos nosso, e nunca partilhavam todas as desventuras que contávamos entre nós; e pela maneira como nos falavam da sua escola, pareciam saídos de uma iniciação ao banditismo que, tímido e impressionável como era em criança, fascinava-me a atemorizava-me em simultâneo. Aí, estas crianças viajando para a adolescência eram novamente divididas em três tribos, mas bem distintas: a da Carreira; a do comboio; e a do autocarro.

Eu pertenci a esta última até terminar a carreira académica. Não vou aqui aborrecer-vos com as intrincâncias do 10-Ceira, a linha que me levava do centro do meu mundo ao centro de qualquer coisa a que íamos chamando "escola". Por muito que não o tenha usado, o meu foco é o comboio. Hoje uma memória assim esbatida nas conversas de café e grupos de partilhas de memórias da minha terra, houve uma altura em que era como que uma coluna vertebral que unia principalmente as povoações do sul da freguesia, o Sobral e as Vendas de Ceira, à cidade. Com o advento do Metro Mondego, patranha que encheu os bolsos a alguém e esvaziou Ceira de opções de transporte, já nem os carris sobram. As minhas recordações das carruagens são esparsas. Na verdade, poucas vezes usei a "automotora", a locomotiva preferida das linhas regionais. Nunca lhe senti a falta. Em criança, tenho aum vaga ideia de ver imagens da tragédia ferroviária de Alcafache, onde dezenas de pessoas - num número não especificado até hoje - mal sobraram calcinadas em morte depois da colisão entre dois comboios perto de Mangualde. Nem era bem medo o que me causava, mas espanto. Pensava às vezes na mágoa dos meus pais se não me conseguissem reconhecer. Morrer não me assustava em criança, algo que não posso dizer na minha condição de adulto, e acho que me perturbava mais a inquietude familiar em relação ao meu corpo. Imaginava a minha mãe em pranto, o meu pai numa certa desolação muda. Escusado será dizer que tive uma infância pouco paradigmática, ou se calhar encaixando no paradigma daquilo que dei quando cresci: uma ave rara. No entanto, os meus traumas valiam menos do que passar a noite em casa dos meus avós maternos, que me criaram a meias. Havendo oportunidade, adorava ver televisão com o meu avô e conversar com a minha avó sobre Coimbra e sobre a nova escola, sobre o que fazia. A Lurdes nem era bem segunda mãe, era mesmo primeira avó. Mesmo depois de passar os dez anos, gostava de ficar uns minutos comigo antes de dormir, a falar de patetices e a explicar a vida da terra, a fresa e que agora já não brincava tanto com as molas. Mesmo que eu não precisasse, insistia em deixar a luz acesa. Porque assim ficava mais sossegada. Nem era por mim, era por ela. Hoje penso que se calhar já antevia dentro de mim a génese da escuridão que foi crescendo e tomando conta, e como se quisesse mantê-la ao largo mais uns tempos, porque eu até merecia ser criança ainda, guardava a lâmpada iluminada como uma candeia que protege o Santíssimo das investidas demoníacas. Ela acreditava um pouco nessas coisas, tirava quebrantos e rezava responsos a pedido de outros. Não sei se resultava, mas sempre senti nela uma sensibilidade diferente para o mundo e para a realidade. Talvez por isso gostasse tanto de mim, talvez por isso sinta a falta dela de uma forma quase de navalhada ainda que ela já não ande por cá em duas pernas fez quinze anos em Abril; e o valor dessas noites só cresceu no tempo. Mas morando ela no Sobral, sabia que teria de usar o comboio para ir à escola de Coimbra. Porque independentemente dos nomes, sentíamos todos isso em Ceira: íamos à escola à cidade.

Tenho tido tempo para recordar isso. O adiantamento da minha barriga em sentido protuberante levou-me a usar a caminhada como método de combate ao alargamento. O ramal ferroviário deu lugar hoje a uma via de terra batida que uso como trilho de passos. A minha ligação emocional àqueles espaços é exígua, e apenas sinto um aperto quando perto da estação do Sobral olho para a casa dos meus avós e está igual. Ou se calhar eu mudei tanto que quero manter em estado perfeito os refúgios em mim que me recordam do que fui de feliz. Faço um percurso simples e quase sempre em recta. Atravesso duas pequenas pontes sobre as águas escuras do rio Corvo, que murmura depois das chuvadas, mas em silêncio se guarda nas alturas de seca, e atravesso o breu de um túnel curto, mas que a meio escurece por completo. Se parar, as luzes de ambas as entradas são visíveis; o chão, no entanto, engole-me. Como se me recordasse de que que por muito que tente deixar entrar a luz, a sombra segue-me; ou então, que reparo muito mais na constância da sombra do que na vibrância dos raios luminosos que querem rasgá-la. Sigo e chego à Tremoa, de onde regresso ao ponto inicial. A ideia é moer-me as pernas e pensar o mínimo possível, mas recordo sempre os meus avós, mesmo por entre a monótona voz de relatos de crimes reais que me costumam acompanhar no exercício. O mundo é bem real à beira da linha. Casas no campo, cabras do monte, pastores e cães barulhentos. Aldeias mais esguias e pequenas do que a minha, mais sós, mais prontas a separar-se e talvez voar como um balão para algures. Há quem espreite à janela, talvez esperando o comboio que não volta, sentindo saudades de serem alguém com o barulho da automotora. Já tentei recordá-lo, e não consigo. Talvez porque recordar é dar movimento ao coração, literalmente, e eu sou uma criança de autocarro. A voz monocórdica fala-me de facas e sangue, e quando o relógio cardíaco engrena, lembro-me do meu avô vendo a tourada e a chamar nomes ao Futre; e também das batatas fritas meio queimadas que a minha avó fazia e de como o comboio, por muito respeito que me causasse, parava sempre naquela estação do Beco Trás das Eiras, não suburbano, mas sobre-humano no quanto me fazia sentir querido. Quando chego ao final da malha que dou a mim mesmo, verifico os quilómetros e as calorias. Verifico também o coração, mas não apenas a batida. Tento convencer-me de que sou querido, e num longo olhar pela recta do comboio, não consigo ver a resposta. Sinto-a, mas temo-a. Talvez, quando não encontramos quem nos aceite no regaço em adultos, regressemos onde um dia nos sentimos no mundo mesmo. Ou então, se parar no túnel e não reparar no breu, talvez a Lurdes tenha lá deixado a voz. Talvez se retirar os auscultadores a ouça e talvez ela me diga, como me dizia sempre em criança, que as coisas se resolvem. Sempre. Ainda que não se resolvam como queremos, resolvem-se inevitavelmente. E depois beijava-me na cara e tapava-me no sofá e desejava-me um bom sono e que sonhasse com coisas boas. 

Há noites em que a ouço. E em que quero que o comboio passe. Mas já não volta. Ainda assim, tenho o consolo de ser um menino do autocarro; e que talvez a solução esteja aí. Uma via diferente para um destino diferente.